Junho 05

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De olhos vendados


A Marta era uma jovem praticante que treinei alguns anos atrás. Aos seus 12 anos, o pai quis que ela praticasse algum desporto e levou a filha a um treino para que começasse a treinar comigo. Cedo percebi que estava perante uma jovem cheia de talento, mas desconfiei do que considero ser o mais importante: as capacidades mentais, a perseverança… valores tão complicados nos jovens que, de certa forma, já não passam pelas dificuldades de outros tempos.

De início não lhe disse que podia ser uma boa lançadora e deixei-a correr e explorar um conjunto de jogos de corrida com os colegas de treino. A Marta não sabia o que podia vir a ser mas, foi desenvolvendo capacidades diferentes que me fizeram perceber que afinal, a rapariga era danada! Determinada, competitiva mas, sem resultados desportivos. Afinal competia em provas de resistência, velocidade e saltos mas, muito pouco nos lançamentos. 

A Marta não conseguia perceber o quão talentosa era e como se podia transformar numa atleta de elevado nível, se assim quisesse. Sem perceber andava a trabalhar outras competências mais ligadas à melhoria da sua capacidade mental. Os treinos eram divertidos, as relações sociais cada vez mais fortes e a Marta não falhava a carrinha que caía aos poucos e a levava para os treinos. Não saberia bem porquê, mas gostava do ambiente e das adaptações que ia sentindo no seu corpo, o que é muito bom e faz com que os primeiros passos se dêem simplesmente, porque se gosta! O passo seguinte foi fazer com que gostasse muito do que fazia e só depois deve vir o resto. Durante toda esta fase, a Marta estava numa escuridão completa relativamente ao seu potencial desportivo e não eram os resultados que a motivavam a se deslocar aos treinos. Eles ainda não existiam…

Ao fim de algum tempo, surgiram alguns treinos técnicos mais específicos e rapidamente aquela jovem, de estatura elevada, começava a dar nas vistas. Dotada de capacidades que a distinguiam das restantes, foi fazendo um percurso suportado na aprendizagem técnica e rapidamente os resultados e títulos nacionais, enquanto jovem, foram aparecendo. Não havia pressão, não havia treinos exagerados, as cagas de treino de força eram baixas – muito mais baixas que outras da mesma idade faziam. Sem pressas, a técnica foi o ponto alvo principal, até chegar a uma promissora marca de 41.56 no lançamento do disco, quando era ainda juvenil. 

Entre várias opções do treino, decidi iniciar um trabalho técnico realizado de olhos vendados. Sem referências visuais de qualquer espécie. A Marta tinha de “olhar” para dentro dela e perceber como funcionava cada músculo, como rodavam as sapatilhas no cimento, como seria capaz de bloquear o movimento e parar bruscamente e ainda de ficar algum tempo a interpretar o que fez, mantendo a posição final. Era incrível! Séries enormes de lançamentos seguidos de olhos vendados. A Marta sabia onde estavam os engenhos, pegava neles, regressava ao círculo, colocava-se no local exacto e fazia lançamentos incríveis. A Marta parecia ver tudo, o que me levou, por várias vezes, a gesticular à frente dela para ver se ela estaria a ver algo e reagia… nada! Não via nada, a não ser o que a sua elevada noção de relação com o espaço e enorme capacidade neuromuscular lhe permitia “ver”. Entretanto, a técnica crescia a olhos visto e os resultados falavam por si. 

Tentei fazer o mesmo com mais alguns jovens lançadores, sem sucesso. Não eram capazes de olhar para dentro, de parar no tempo, de encontrar a paz necessária, para a partir daí, melhorarem o seu desempenho. Irritavam-se. Ficavam mais descoordenados, desorientados e incapazes. A Marta “brincava” com as suas capacidades. Sorria de satisfação ao fazer o lançamento bem feito e a parar no tempo referindo o que podia melhorar de forma incrivelmente assertiva. O talento vinha de dentro e eram essas capacidades que estimulávamos a cada dia…

Ao longo dos últimos meses temos vivido um momento de desilusão e desorientação generalizada. Na nossa vida pessoal, nas empresas, nas famílias e claro, no desporto! Não me faltam praticantes desportivos que me abordam basicamente sem saberem o que fazer. Quando procuro fazer o mesmo exercício que fiz com a Marta, as respostas são por vezes preocupantes. Não conseguimos “olhar para dentro”.

Se por um momento, conseguíssemos parar e perceber qual a atitude correcta, perceberíamos que corremos porque gostamos de correr, porque queremos estar mais saudáveis e porque de forma competente procuramos mudar aspectos físicos e mentais dentro de nós, que são mais importantes e precursores do que a competição.

Definir objectivos é determinante para as nossas vidas e para a nossa motivação se manter em alta. Mas perante dificuldades que nos podem surgir ao longo da vida (o COVID-19 não é a única…), esta capacidade de “vendar os olhos” e sentirmos o que realmente é importante pode ser decisivo! 

Não defendo a ideia de que perante a falta de objectivos competitivos, devemos simplesmente esperar… Existem muitas coisas que podemos mudar num atleta e os treinadores podem e devem ser agentes importantes dessa mudança. Enquanto treinador, quando percebi o que podia acontecer, desenvolvi um “kit de sobrevivência” para cada um dos nossos atletas de elite e procurámos com todos, mesmo com os corredores recreativos ou jogadores de futebol, dar-lhes um rumo, com uma ampla diversidade de opções de qualidade. “Vendar os olhos”, permite perceber que existem muitas coisas que podemos melhorar, mesmo quando outras não podem acontecer. Ganhar sensibilidade para dar importância a aspectos que frequentemente negligenciamos. Transformar momentos de dificuldade em oportunidades de crescimento terá de ser o ponto chave. Mas para isso, não podemos entrar na inquietação dos jovens lançadores quando se viam de olhos vendados e obrigados a “olhar” através de outras variáveis. Temos de nos inspirar na Marta, aquela jovem que perante a dificuldade, lutava por resolver os problemas utilizando outras capacidades que ia descobrindo a cada tarefa. O desafio de ser capaz de outra forma, de reinventar o processo e sermos bem sucedidos… Por isso terminava com aquele sorriso desafiador de quem sabia que estava a fazer bem e mais do que isso, sabia o que tinha de fazer para ser ainda melhor!

No desporto, adoramos desafios e o primeiro grande desafio tem de ser connosco, com os nossos limites e não com os limites dos outros, impostos pelo “ruído” da competição que sendo positiva na definição de objetivos, nos leva muitas vezes a nos afastarmos de nós próprios. 

“Vendam os olhos” com tranquilidade e descubram como se podem aperfeiçoar olhando de outra forma para a vossa performance pessoal e desportiva.  

Marta Carvalho – Jovem atleta da ADC Constantim na década de 90.