Talentos perdidos


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Num país tão pequeno como é o nosso, é naturalmente mais difícil termos uma base de recrutamento elevada de potenciais jovens atletas talentosos para a prática desportiva, o que de alguma forma nos pode fazer pensar sobre a forma como conseguimos ao longo de muitos anos termos atletas de tão elevado nível na corrida.

A nós surpreende-nos ainda mais o fato de percebermos que temos imensos atletas jovens, incrivelmente talentosos, que de alguma forma se foram perdendo pelo caminho. Os motivos podem ser muitos, desde falta de apoios e incentivos, alteração dos seus estilos de vida, opção por se dedicarem aos estudos ou uma profissão em vez do desporto, excesso de treino mal conduzido ou simplesmente saturação de uma prática desportiva com exigências muito próprias.

O que mais nos preocupa são estes dois últimos motivos, uma vez que são estes que estão mais ligados com o processo de treino e que de alguma forma podem ser responsáveis por queimar demasiadas etapas muito importantes para a construção de um atleta de élite. Não nos preocupa que um jovem atleta faça outras opções de vida, porque aspira outras áreas profissionais na sua vida, mas preocupa-nos aqueles jovens que se entregam totalmente ao processo de treino confiando que vão ser campeões por muitos anos, quando na verdade será o próprio treino mal orientado que poderá comprometer o seu crescimento desportivo e a sua sustentabilidade em elevados níveis de rendimento. É assustador corrermos o risco de fazer perder a oportunidade inata que muitos jovens já poderão ter de se assumirem como praticantes de elevado nível! O treino não serve para isto…

Não nos podemos esquecer de jovens que orientados “tecnicamente” por familiares foram treinados bem acima dos limites razoáveis, ou de treinadores que a todo o custo procuraram desenvolver “elevados” níveis de rendimento em jovens para deste modo mostrarem a sua “elevada competência” técnica. Já para não falar nas exigências por vezes colocadas por clubes, seleções e competições que claramente dão ênfase ao resultado desportivo em detrimento da formação desportiva.

A verdade é que o jovem talento, quando o é de fato, pouca necessidade terá de cargas de treino elevadas, pois o seu talento natural, definido por uma herança genética elevada, o coloca bem acima dos jovens da sua idade. Neste caso, mais do que procurar desenvolver estratégias de treino copiadas dos adultos para o fazerem crescer desportivamente, o que se assume como determinante é deixar que o talento natural do jovem seja potenciado através de um treino diversificado, cuidadoso e mais alicerçado na qualidade dos estímulos de treino do que propriamente na quantidade de treino acumulado. Neste caso, sintetizamos os seguintes problemas, como sendo os que nos parecem mais comuns ao nível do treino de jovens talentosos para a corrida:

1. A qualidade em detrimento da quantidade – Se o jovem apresenta um talento natural para a corrida e um nível de resistência que o faz destacar-se dos colegas da sua idade, o treino deverá ser dirigido para a diversidade de estímulos musculares e nunca para o aumento constante dos volumes de corrida. Aqui interessa desenvolver aspetos técnicos da corrida, capacidade de força, coordenação e equilíbrio, uma vez que o resto o jovem já possui de forma inata e este tipo de treino tratará de resolver outras importantes variáveis…

2. A força como a base da formação do corredor – Porque pretendemos construir um jovem com uma elevada capacidade de deslocar o seu corpo na corrida, temos de lhe dar o que o talento natural para a corrida não lhe dá tão facilmente e que se relaciona com a capacidade de deslocar com facilidade o peso do seu corpo durante a corrida.

3. Fibras rápidas em detrimento de fibras lentas – O aumento na capacidade de estimulação das fibras rápidas é determinante pelo que mais do que somar volumes de treino, se torna decisivo realizar exercícios coordenativos, jogos e treino propriocetivo que o ajude a melhorar a velocidade e capacidade de recrutamento das fibras rápidas.

4. Controlo postural – Devemos dotar os jovens de um comportamento postural adequado, para lhes dar a capacidade de suportar bem o peso do seu corpo na corrida e de lhe dar uma capacidade aumentada de prevenção de lesões que deverá fazer parte da progressão desportiva de um jovem corredor. Com ausência de lesões, aumenta-se a motivação do jovem e a capacidade de assimilar de forma constante ao longo dos anos os efeitos positivos das cargas de treino, sem interrupções indesejadas.

5. Aposta na velocidade – Fazer com que a melhoria da velocidade constitua a alavanca da sua progressão desportiva. Se existe algo importante num jovem é preservar e melhorar a sua capacidade de correr rápido, evitando estímulos de treino baseados em tarefas de treino dirigidas para as fibras lentas, quando queremos no futuro que esse jovem seja capaz de variar ritmos e correr rápido sempre que necessite.

6. Economia do treino – Procurar fazer com que o jovem evolua com a menor quantidade de treino possível, pois quanto maior for a evolução com poucas cargas de treino, maior será a possibilidade de progressão desportiva, bem como a probabilidade de no futuro, o rendimento desse atleta se sustentar por mais anos no alto rendimento.

7. Jogos de velocidade – Apostar nos jogos competitivos, como a melhor forma de estimular bons níveis de intensidade em diferentes tipos de treino, evitando que a competição seja apenas a competição formal, que muitas vezes leva à saturação e desmotivação. Existem excelentes estratégias de jogos desportivos e lúdicos que podem desenvolver a capacidade do jovem se tornar competitivo e simultaneamente melhorar algumas importantes capacidades motoras que dependam da solicitação das fibras rápidas.

8. Treino multidesportivo – Desenvolver um trabalho multidesportivo completo, que permita através de diferentes escolhas um desenvolvimento equilibrado de diferentes capacidades motoras. Antes de um corredor, temos de desenvolver um desportista com capacidade de fazer realçar um domínio corporal muito diverso perante atividades desportivas muito variadas.

9. Objetivos competitivos não formais – Desenhar objetivos de evolução que possam ir muito para além de objetivos competitivos habituais. A criação de objetivos de melhoria em diferentes tipos de testes, jogos ou capacidades, permitirá fundamentar a evolução do jovem, sem que seja o resultado da competição formal o alicerce da sua evolução desportiva.

10. Evitar os efeitos negativos da quilometragem de corrida – Proibir o somatório de quilometragens de corrida, como suporte para a melhoria de rendimento. O sucesso suportado neste aumento de volume, terá os dias contados, quando a falta de diversidade de estímulos acabar por comprometer uma evolução competitiva que deixará de acontecer a curto ou médio prazo. Aí será difícil voltar atrás, uma vez que os estímulos que deveriam ter sido desenvolvidos desde muito cedo passam a ser muito mais difíceis de reproduzir efeitos, num corpo que durante alguns anos apenas treinou na direção errada e com volumes de treino que apenas estimularam um regime de contração muscular, pouco eficaz na melhoria do rendimento competitivo.

O jovem não pode ser visto como um adulto em miniatura. A mera redução de volumes de treino normalmente administrados a atletas seniores não responde de forma alguma à especificidade do treino de um jovem. O treino de um jovem, exige uma diversidade constante, estímulos capazes de desenvolver diferentes capacidades e uma paciência que não sendo fácil para o atleta ter, mais difícil será, se o treinador apenas procurar um sucesso elevado desse atleta enquanto jovem. O bom treinador será o que percebendo esse talento do jovem, consegue fugir à tentação da luta por melhorias de resultados cronométricos, de mínimos e de seleções que podem encaminhar o jovem para um abismo desportivo. Saber explicar isso aos jovens é o desafio que se segue…

É urgente mudar mentalidades e fazer alterar uma forma de treinar jovens suportada no aumento da quantidade de treino, na esperança que dentro de um grupo saia um jovem capaz de suportar um tipo de treino baseado em cargas de treino exageradas.

Os jovens que se dedicam ao treino da corrida com vontade de serem atletas de bom nível não abundam, o que exige de todos nós a atenção necessária para não perdermos o pouco que temos, de modo a que os muitos talentos que anualmente vamos conhecendo em eventos de corrida, não se percam para sempre, como muitos se perderam ao longo das últimas décadas.

Já agora… nada contra os resultados de excelência em jovens, desde que as preocupações na sua formação sejam correspondentes às que apresentámos nestes 10 pontos! Assim, teremos um jovem talentoso, com um processo de treino cuidado e que ainda por cima tem rendimento competitivo enquanto jovem. Haja a capacidade de não se querer sempre mais, ultrapassando limites que não devem ser ultrapassados…

O segredo do sucesso estará na qualidade do treino e não na quantidade!